Brilhantes

Marcel
5 min readAug 10, 2023

--

Photo by Mark Rabe on Unsplash

O rádio-relógio marcava 6:30. One hundred five point five… Ouro Verde Easy Radio rompeu o silêncio. Rubens já estava acordado, mas sempre esperava a ordem do rádio para levantar, como se aguardasse o recruta executar o toque da alvorada. Levantou, arrumou a cama de imediato, ligou o chuveiro e foi separar a roupa que iria vestir. A mesma rotina de todos os dias. Rubens executava tudo no automático. Enquanto separava sua calça ouviu no rádio, Tempo em Curitiba hoje terá sol entre nuvens e risco de pancadas de chuva!, olhou pela janela e a neblina era tão densa que nenhuma luz chegava até sua alma. Robotizado, abriu a outra porta do guarda roupa e separou o pulôver preto, entrou no chuveiro, saiu, preparou seu café preto e sem açúcar, tomou puro e foi trabalhar. Mesmo exercendo um cargo de chefia na Receita Federal fazia questão de bater seu ponto exatamente às oito horas da manhã. Na repartição, se concentrava em falar apenas sobre contabilidade, números e tributos. A única decoração da mesa era um vasinho de porcelana escura, que quando ganhou de aniversário de seus colegas tinha uma suculenta. Sobraram somente as pedrinhas brancas e um ramo seco enterrado. Chegou o final do expediente, a equipe inteira foi embora e Rubens ficou sozinho fazendo hora. Era dia de terapia e ele ia direto para a consulta. O início do tratamento foi compulsório depois de uma crise no trabalho mas agora a sala da psicóloga é o único espaço onde ele sente que alguma coisa ainda pode brilhar dentro dele.

Quando saiu do prédio da Receita o céu estava em conflito e alguns pingos de chuva já molhavam seu mocassim marrom, lembrou que o guarda-chuva ficou ao lado do gaveteiro mas decidiu arriscar ir até o consultório antes que o céu desabasse. No meio do caminho, enquanto passava em frente à catedral da praça Tiradentes, um pé de vento cruzou suas pernas e quase o derrubou. Ainda desequilibrado, entrou na igreja e foi parar perto das velas que brigavam com o vento para se manterem acesas. Rubens não é religioso, mas por um instante ficou observando a dança das chamas e desejou ter a mesma energia daquelas que se recusavam a apagar.

Eu não sei o que aconteceu naquela noite na sala da psicóloga, a única coisa que eu sei é que enquanto eu estava debruçado sobre a maca, olhando para o chão de taco e sentindo a agulha com tinta vibrar sobre meu ombro, Rubens entrou pela porta de supetão, eufórico, Quero tatuar um farol!!!, todos pararam assustados, Para eu nunca me esquecer da minha própria luz!, um grito de desabafo. Eu me apaixonei naquele instante! Pela sua voz, por aquela energia. Levantei num impulso, chamei ele e falei para minha tatuadora riscar antes que o arrependimento se apresentasse. Sentei num banquinho perto da maca, com um lado da camisa vestido e o outro solto e quando percebi seu olhar acompanhando os riscos do meu corpo arrisquei um flerte. Tá com medo? Quer que eu segure sua mão?, por um instante pensei que ele fosse pedir para eu me retirar. Quero!

Entrelacei meus dedos com os dele e dali surgiu um brilho tão grande que quando me dei conta, nós já estávamos falando, Sim! Aceito!, um para o outro. (Claro! O que eu estou fazendo aqui é um resumo. É óbvio que tivemos momentos nebulosos).

Os anos passaram e Rubens continuou metódico, muito menos de quando a gente se conheceu, mas ainda ao ponto de às duas da madrugada parar no sinaleiro. Mauro, não tá vendo que o sinal tá fechado? A gente pode causar um acidente avançando!, sempre a mesma resposta que eu ouvia quando argumentava que ficar esperando era perigoso.

Houve um momento que nos enxergamos estando no meio da Serra da Graciosa, à noite e com neblina. Não sabíamos qual direção tomar no nosso relacionamento. Se seguíamos em frente ou para trás, se ia cada um com seu carro ou se permanecíamos juntos. Até que Daniel surgiu em nossa vida e foi como se os olhos de gato brilhassem na beira da estrada. O medo de se confundir na neblina e acabar caindo na ribanceira ainda existia, mas tivemos coragem de seguir em frente.

Ainda lembro do dia que nosso filho chegou em casa. Como as coisas aconteceram repentinamente, não tivemos tempo de organizar o quarto dele. Trocamos uma mesa de jacarandá, herança de Rubens, por um colchão e lençóis de dinossauro. Arrastamos as estantes e a biblioteca ficou pronta para acolher o Daniel. Quando ele entrou pela porta e viu os livros, Eu vou morar no farol do saber?!, eufórico, ainda sem acreditar no que estava acontecendo.

Numa manhã durante o café, enquanto cortava seu pão com tanta simetria que parecia estar usando um esquadro, Rubens que já tinha percebido que os hormônios do nosso filho estavam iniciando a revolução convidou a família para um passeio noturno. Mauro, Daniel… meus amores. Vocês gostariam de ir ao cinema hoje à noite?, a empolgação foi instantânea! Daniel nunca tinha ido ao cinema. Vamos sair às 19 horas de casa, estejam prontos! Justamente nesse dia um imprevisto aconteceu na repartição e atrasou a saída do expediente. Meu marido ligou avisando e pedindo para a gente esperar na calçada. Logo que entramos no carro percebi que ele estava tenso, para piorar quando chegamos ao shopping o estacionamento estava lotado e isso tirou o resto da sua paciência. Foi quando o nosso filho calmamente colocou a mão sobre o ombro do pai, Calma pai, é só olhar para as luzes em cima da vaga. A calma foi restabelecida, pegamos o combo de pipoca e entramos na sala com as luzes apagadas e o trailer passando. Mesmo no escuro foi possível ver o rosto de Daniel encantado com as luzinhas da escada que guiavam o caminho até as poltronas. Quando o filme acabou, uma explosão de duas supernovas tomou conta do rosto do nosso filho. O encantamento era tanto que a gravidade parecia ser a da lua.

Para encerrar a noite noite mágica levamos nosso filho até o aeroporto. Paramos o carro na avenida Rui Barbosa, bem em frente à cabeceira da pista e enquanto trens de pouso pareciam tocar nossas cabeças. Tá vendo aquelas luzes piscando? Elas vão te levar para onde você quiser! O mundo, meu filho, é todo seu!, e Nunca se esqueça que nós seremos sempre a sua luz de saída de emergência. Sempre que quiser ir para um lugar seguro é só procurar a gente.

Hoje nós estamos aqui, sentados numa poltrona de veludo roxo, na plateia aguardando ansiosamente o anúncio do vencedor da categoria que Daniel está concorrendo. As nossas mãos enlaçadas parecem que acabaram de sair de dentro do Nhundiaquara…

E o Kikito de melhor fotografia vai para… Daniel Vitor

Brilhou! Nosso filho brilhou!

--

--